Uma paixão recém adquirida pela sociedade mundial são as séries de TV. O formato desse programa não é novo, mas a febre com que se discutem os episódios e temporadas nas rodas de amigos, nos núcleos familiares e até mesmo nos ambientes de trabalho, superaram o alcance das novelas e das sitcons.

Alvo de grande discussão, a série britânica “Black Mirror”, transmitida pela Netflix, retrata diversas situações – em verdadeiros exames sobre a sociedade – à luz dos reflexos das novas tecnologias desenvolvidas. Cada episódio possui uma linha de desenvolvimento própria, com “começo, meio e fim”, e normalmente se utilizam de um tom sarcástico para causar alguma reflexão.

Em um dos episódios, uma mulher perde seu esposo, e através da tecnologia é possível recriá-lo, com as mesmas interações, gestos, trejeitos, vocabulário, características de personalidade que o definiam em vida. Não darei spoilers, fiquem tranquilos. Sem prejuízo, é possível dizer que essa mulher tem seu marido de volta, na forma de um robô, e tudo graças a pessoa que ele se mostrava ser nas redes sociais.

Apesar de ser um episódio que retratava uma situação fictícia, ela não está tão longe de nós quanto gostaríamos de estar. Na série, a empresa que fornecia o serviço fazia uma busca em todas as redes sociais da pessoa falecida, computava seus “likes”, suas conexões, e sua forma de reagir frente ao mundo virtual. Com anos de uso das redes sociais, as pessoas deixavam traços suficientes para se fazer o dito clone. Atualmente, não temos pessoas sendo “trazidas de volta à vida” por meio desse mapeamento virtual, mas temos vivido situações igualmente assustadoras. Vou dar alguns exemplos: já aconteceu de você ter simplesmente enviado uma mensagem com um determinado assunto, e logo em seguida diversas propagandas relacionadas a isso aparecerem na sua tela? Ou, pior ainda, ter tido uma conversa, que ocasionou na mesma sensação de estar sendo observado? Infelizmente, nós efetivamente estamos sendo observados, mas tenho certeza de que isso não lhe é novidade.

Os propósitos que levam a essa “espionagem” são diversos. Marketing, política, e o controle de segurança nacional são algumas das justificativas usadas por quem se utiliza dessa prática. Para muitos, a forma de encarar a situação é aceitar que atualmente não se pode mais falar em “privacidade”. Para outros, o extremo adotado é o oposto, limitando o compartilhamento de dados para um mínimo possível. Há também quem não resista a um teste de Facebook, os famosos “quizzes”, para descobrir “Com qual cachorro você se parece?”, dentre outras brincadeiras, sem saber que esse é um dos meios mais fáceis de se conceder os dados pessoais (este foi, inclusive, o meio utilizado pela empresa Cambrydge Analytica, por trás da polêmica envolvendo a campanha eleitoral do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump)

A boa notícia, no entanto, é que no dia 10 de julho de 2018, foi aprovado no plenário do Senado Federal o PLC 53/2018, que dispõe sobre a proteção de dados pessoais e modifica a Lei 12.965/16 (Marco Civil da Internet). É a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira (LGPD). Após 2 anos de trâmite no Congresso Nacional, duas consultas públicas, inúmeras interferências internas e externas, finalmente estamos no momento em que aguardamos sanção (ou, talvez, veto parcial) presidencial. Se aprovado, o PL passará a ser lei, e terá período de adaptação de 18 meses.

O conceito de “privacidade” é bem amplo, e muda de acordo com o tempo, cultura, geografia, e características de um povo. Sendo assim, não é possível regulamentar uma “lei mundial” sobre a privacidade. No entanto, a rede virtual é una e, com a globalização, as discussões sobre os temas de preocupação das sociedades têm, cada vez mais, se padronizado diante da exposição que o mundo virtual proporciona.

Estamos falando de um significativo avanço para nós como nação. Coloca o Brasil no “mapa” dos países que levam a segurança de sua rede e de seus usuários a sério. As ameaças e interferências que podem ser sofridas atualmente são diferentes das que se manifestavam sem a disseminação e avanço da tecnologia. Ao garantir direitos e liberdades individuais, o Estado não pode ignorar que, para que esse direito seja efetivado, há necessidade de regulamentar o mundo virtual também.

Nossa sociedade é movida a dados, e essa lei proporcionará, além de tudo, desenvolvimento, segurança jurídica, direito à privacidade (trazendo maior transparência, principalmente), e estabelecerá regras claras para empresas sobre a coleta, armazenamento, tratamento e compartilhamento de dados pessoais para empresas. A unificação das regras será uma forma de garantir maior flexibilidade ao se trabalhar com os dados pessoais no país, além de fomentar os setores de tecnologia da informação, que estarão em padrão equivalente ao internacional.

A LGPD busca oferecer maior segurança ao emitir opiniões, buscar informações, e se manifestar de forma geral na internet. Dentre seus propósitos, o PL propõe uma restrição da comercialização de dados sem conscentimento dos usuários, a fim de que as informações fornecidas não sejam utilizadas fora do fim ao qual foram concedidas. Além disso, dados sensíveis, tais como origem racial ou étnica, orientações políticas, religiosas, vida sexual ou aspectos de saúde também são alvo dessa proteção. O Projeto de Lei, mesmo que geral, vem para tampar lacunas existentes e, principalmente, passar credibilidade ao sistema de proteção de dados brasileiro.

É imporante ressaltar, todavia, que “privacidade” e “proteção de dados” são conceitos distintos. Enquanto o primeiro é o direito de ter suas informações e vida pessoal resguardados, o último é uma espécie de “guarda chuva”, amplo, que abrange a liberdade de expressão, saúde, o direito de não ser discriminado de cada indivíduo, dentre outros. A mudança procura devolver ao indivíduo o direito de escolha de ter suas informações divulgadas, ou não. A previsão sobre a criação de uma autoridade independente para aplicar e fiscalizar essa matéria é uma forma de reforçar isso, passando segurança na aplicação da lei. Questiona-se, no entanto, o seguinte:

Seria possível acreditarmos que nossa tecnologia conseguirá superar a de países que, diferentemente de nós, investem na capacitação de seus profissionais, a fim de criar e fornecer produtos de primeira linha?

A proteção de dados requer tecnologia ponta de linha, e um profissional com vasto conhecimento técnico de informática e programação. Sendo assim, parece-me que será necessário desenvolver, além da Lei, uma estrutura adequada para comportar essa proteção prometida, e investimento na capacitação desses profissionais.

Mesmo sem saber qual será o fim do PL 53/2018, a sensação de proteção que a referida Lei nos causa é evidente. Saber que o Brasil poderá entrar para a “lista dos 100 países que podem ser considerados adequados para proteger a privacidade e o uso de dados” nos passa uma boa impressão e, não sejamos céticos: dá esperança de que estaremos mais seguros num futuro próximo. No entanto, vale lembrar que, além de sonhar, nós devemos prezar sempre pela sabedoria ao adentrar o mundo digital, pois não há quem nos salve se cairmos na tentação de ignorar as letras miúdas, e aceitar os termos e condições de uso do próximo “quiz” de Facebook que aparecer na timeline.

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